Memorial de Francisco Rezek
1. Há cerca de dois anos o Dr. Jackson Kepler Lago, médico, cirurgião-geral, foi eleito Governador do Estado do Maranhão a cassação do diploma que por ela própria lhe foi expedido na época, habilitando-o em seguida à investidura no cargo que o eleitorado maranhense, em sintonia com o ideal democrático contemporâneo, lhe quis confiar. Realizado seu objeto, esse diploma, desde a investidura e ainda hoje, não é mais que um quadro na parede. Esse quadro dói, entretanto, em quem não se conforma com havê-lo perdido, sobretudo se essa perda significa o desfecho de um longo processo histórico de dominação política por meios que não vem ao caso, neste momento, recordar ou discutir.
2. O Vice-Procurador Geral Eleitoral emitiu, em tempo admiravelmente exíguo à vista do volume do feito, o parecer em que preconiza que o Tribunal acolha o recurso para cassar, agora já não mais o diploma, mas o mandato do Governador Jackson Lago, por suposto abuso de poder econômico e político, que teria sido praticado em seu favor pelo ex-governador José Reinaldo Tavares. Vai adiante, e recomenda que se diplome, para conseqüente investidura, a candidata derrotada em segundo turno do processo eleitoral, e que vem a ser, no quadro complexo das alianças locais, uma antiga aliada do mesmo ex-governador.
3. Esse parecer, com todas as homenagens que merece a instituição integrada por seu signatário, é uma peça contaminada por gritantes contradições e equívocos jurídicos. Quero, entretanto, abstrair aqueles vícios relacionados com matéria preliminar, já que é no mérito da tentativa de golpe de Estado pela via judiciária que se estamparam, em nome do Ministério Público, os mais graves defeitos de análise dos fatos e do direito.
4. O parecer acata a tese inconsistente de que o então Governador do Maranhão, José Reinaldo Tavares, praticou abuso de poder em favor de três candidatos que então competiam com sua antiga aliada: Jackson Lago, Edson Vidigal e Aderson Lago. Para sustentar essa conclusão, prende-se à presença do atual Governador em evento ocorrido na cidade de Codó, no interior do Maranhão, meses antes do pedido de registro de sua candidatura, e seguramente à distância do trimestre referido nos artigos 73, VI, a e 77 da Lei 9.504, de 1997. Nesse evento, o ex-Governador ter-se-ia referido a Jackson Lago como candidato ao governo, assim como, na mesma qualidade, a outros pré-candidatos mais.
5. No parecer se encontra referência a “farta prova”, quando não mais se encontrou que esse “vínculo” entre a candidatura do doutor Jackson Lago e o então Governador José Reinaldo Tavares. Parece pouco e precoce, de todo modo, o evento realizado em município do interior do Maranhão para viciar votação obtida por um candidato em todo o território do Estado.
6. Uma vez providenciado o “vínculo” entre a candidatura e o governo da época, passa a quota ministerial a arrolar os motivos que levam o douto Procurador a dar pela ocorrência de abuso de poder. Teriam sido firmados “convênios eleitoreiros” com municípios maranhenses, para beneficiar não se sabe exatamente a quem, e em todo caso para prejudicar, não se sabe exatamente como, a imagem do complexo político reunido em torno da senadora Roseana Sarney - ao qual pertencera até pouco tempo antes, insisto, o Governador José Reinaldo Tavares.
7. Ocorre que na capital e na segunda maior cidade do Estado, principais responsáveis pela vitória de Jackson Lago, não se teve notícia sequer de um único convênio. O Governador Jackson Lago venceu tanto em São Luís quanto em Imperatriz com as maiores diferenças de votação que teve em seu favor.
8. A defesa do governador eleito também demonstrou que a votação pelo doutor Jackson Lago em 2006 foi proporcionalmente inferior à votação alcançada pelo mesmo candidato em 2002, quando também disputava o cargo de Governador - naquela época em aberta oposição a José Reinaldo Tavares, que disputava as eleições em chapa conjunta com os candidatos ao Senado Roseana Sarney e Edison Lobão.
9. O fundamento da tese do abuso de poder que se imputa ao ex-Governador, com uma indigente tentativa de identificação das vítimas e dos beneficiários, está em ter aquele assinado convênios com municípios para a execução de obras, descentralizando a administração. Esses convênios foram qualificados na petição inicial como “eleitoreiros”, tendo o Procurador abraçado a acusação. Por quê?
10. Pondera o parecer que tais convênios violaram o artigo 73, §10, da Lei nº 9.504/97. Lamentável engano. Esse dispositivo proíbe a distribuição gratuita de bens, com exceção de casos de calamidade pública ou de programa em execução desde o exercício financeiro anterior. Ocorre que os convênios tidos como eleitoreiros tinham por objeto a construção de obras públicas ou execução de ações de saúde. Por outro lado, o dispositivo sequer era vigente em 2006, porque surgido por força da mini-reforma eleitoral resultante da Lei nº 11.300/06. Assim, não podia ter eficácia naquele exercício financeiro, já em pleno curso de execução orçamentária quando da publicação da norma.
11. Uma incongruência mais grave sobreviria no contexto do parecer. Após sustentar a realidade de fatos pouco transparentes, aí incluída a tese surreal das três candidaturas beneficiadas pelo abuso de poder econômico e político do Governador reinante, o douto Procurador opina não pela nulidade das eleições, mas pela diplomação, a meio mandato, da candidata derrotada em segundo turno de votação.
12. O Código Eleitoral determina que, se a nulidade atingir dimensão superior à metade dos votos, haverá novas eleições. Isso pelo motivo óbvio de evitar que um candidato derrotado usurpe o poder sem a necessária legitimidade popular. Para opinar pela diplomação da Senadora Roseana Sarney, o Procurador afasta a aplicação do dispositivo pertinente do Código Eleitoral ao argumento de que, na eleição somente consumada em segundo turno, a eventual destituição do eleito leva à diplomação do segundo colocado que a teria vencido no primeiro turno. É gritante o disparate a que leva, na espécie, semelhante raciocínio.
13. Primeiro, o Procurador afirmou: “Apurada a infração, há de ser imposta a sanção correspondente, não importando quem seja o candidato” (sic). Mas a evidente sanção é a nulidade dos votos, fundamentando a cassação do diploma. Assim, admitida a tese das três candidaturas beneficiárias da simpatia do então Governador Tavares (e só assim se pode sustentar o recurso contra a diplomação, eis que seu candidato era Edson Vidigal, seu correligionário no PSB), os votos dados a esses três candidatos haveriam de declarar-se nulos.
14. A equação é de exemplar simplicidade. No primeiro turno das eleições maranhenses de 2006, os “três candidatos anti-Sarney”, como rotulados no parecer, alcançaram a votação total de 1.414.077 sufrágios. Todos os outros candidatos juntos, em primeiro turno, alcançaram 1.301.733 votos. Dessa forma, procedentes que fossem os elementos narrativos do recurso contra a diplomação, há dois anos, do Governador Jackson Lago, a desenganada conseqüência seria a nulidade do pleito já em primeiro turno, onde os votos nulos teriam largamente superado o número de votos válidos.
15. Vale lembrar precedente específico do Tribunal Superior Eleitoral, onde se estatuiu que “A determinação de novo pleito, nos termos do art. 224 do Código Eleitoral, foi decorrência natural da própria decisão, tendo em vista que a nulidade atingiu mais da metade dos votos no pleito, não sendo necessária a provocação da parte interessada nesse sentido”. (AAG 8055/MG, relator o Ministro Marcelo Ribeiro, DJ de 23/09/2008, pp. 18-19).
O governador do Estado do Maranhão, legitimamente eleito e investido no cargo, há dois anos, pela vontade firme e perfeitamente compreensível do povo maranhense, confia em que a Justiça Eleitoral não dará guarida a essa lamentável tentativa de confisco e usurpação de seu mandato popular.
FRANCISCO REZEK
OAB-MG 10.083 OAB-SP 249.131